Passo a explicar: a coisa demasiado simpática tira o agradável sabor a azedo do dia-a-dia, isto é, é algo com que não podemos embirrar ou resmungar, porque É DEMASIADO SIMPÁTICO! A coisa demasiado simpática providencia tudo com muito cuidado e ao nosso gosto, para que nunca possamos ter razão de queixa dela (quando toda a gente sabe que embirrar e ironizar são actividades fulcrais para o funcionamento saudável do ser humano).
Passo a listar algumas coisas demasiadamente simpáticas com que me debato diariamente:
- A senhora que me atende todos os dias no café. Estranhamente, e contrariando muitos casos de antipatia crónica, a senhora do café está sempre sorridente, cumprimenta-me como se eu fosse a presidente da república e trata-me pelo nome. Como se não bastasse, já por várias vezes ficou ofendida quando me coibi de pedir o café por falta de trocos.
E que é feito do sr. Zé ou sr. Manel, com a unha do dedo mindinho comprida, o bigode oleoso, o hálito a bagaço e a boa má-disposição matinal?
- A caixa de correio do gmail. Que queixas é que eu posso apresentar face a uma caixa de correio virtual que me avisa simpaticamente dos mails que chegam, detecta na perfeição todo o spam (e quando o elimino me diz «Oba!Nenhum spam!») e raramente tem problemas de funcionamente (situação em que, não obstante, me pede «muitas desculpas pelo incómodo. Dentro de momentos, e com os dedos cruzados, volte a tentar.»)?
Mas onde estão as caixas de correio com pouca capacidade de armazenamento, sem discriminação de spam, repletas de vírus?
- O motorista de um autocarro que uso frequentemente. É um senhor que explica tudo muito amavelmente, espera que os velhos se sentem para que estes não caiam com o arranque do autocarro e deixa passar os outros carros sem resmungar.
Face a isto eu pergunto-me, onde está o bom motorista da carris, que arranca velozmente deixando metade dos passageiros em vias de tombar, que resmunga quando não há dinheiro certo para comprar o bilhete, que se atravessa à frente dos carros, que não abre a porta quando o transeunte chega atrasado para apanhar o autocarro e que não sabe dar indicações de nada?
- A atenciosa empregada da loja, sempre disposta a ajudar em tudo, sempre ostentando um agradável sorriso.
Eu já quase choro de comoção quando reencontro a quase extinta espécie de empregada tiazona, de pronúncia afectada, cabelo loirérrimo armado em laca e anestesiante cheiro a perfume de marca (ou imitação de perfume de marca, sabe-se lá...).
Enfim, as coisas demasiado simpáticas são cada vez em maior número, e ocorrem diariamente, provocando a inibição da nossa capacidade de ripostar, ironizar e desejar torcer pescoços. Será o começo da perda de situações dignas de sarcasmo?
3 comments:
Como eu te percebo...
há sempre a hipótese de rumar até uma repartição de finanças perto.
Sim, tenho que começar a fazer isso (já não há sarcasmo que aguente...).
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