Friday, October 19

Inferno #192: Conta de dividir.

Agarrou-lhe o braço e fincou nele as unhas. Era tão ingénua… Pensava realmente que podia manter-se assim muito tempo, a agarrá-lo como se ele fosse de facto dela. Aliás, acreditava que estava de facto a prender o corpo dele com um bocado do seu próprio corpo. Acreditava mesmo que ele acabaria por ceder, e ficar.
Ele observou com calma toda aquela cena final de desespero. Teve até vontade de rir. Claro que já tinha decidido partir, claro que não ia voltar atrás. Claro que gostava dela, genuinamente. Mas era tão transparente que o aborrecia, tão previsível, tão mulherzinha
Bastou um olhar dele, para perceber que não iam mesmo ficar juntos. Largou-lhe o braço, afastou-se da porta. Ficou a ver partir o único homem que tinha amado.

Inferno #191: Pinheiro e carvalho '3.

Tinha os pés gelados. Mas não tanto quanto o coração. Já não se lembrava muito bem de como aquilo tinha acontecido. Já não chorava, não ria, não tinha grande desejo por nada.
Também a voz, porque é com ela que dizemos o que o coração quer, se tinha tornado gelada, grave, robótica.
A figura agora era franzina e pálida.
Há já algum tempo que estava naquela cama branca, alimentada a soro.
Sabia que tinha encenado a própria morte. Deitou-se num caixão e cortou os pulsos, mas mais do que tinha previsto. Só queria chamar a atenção, porque não aceitava não ser o centro das atenções e das preocupações. Salvou-se de ter morrido, mas não se salvou de outra morte bem mais dolorosa - o hospício. A loucura tomou conta dela, acabou por entrar em coma. Já nem sabia há quanto tempo vivia naquela mesma cama: podiam ser dias, semanas, meses, anos. Anos!? O que é que se tinha passado durante aquele tempo todo (que lhe parecia infinito) em que dormiu?

Thursday, October 18

Inferno #190: nem um gajo giro...

Se eu mandasse, todo e qualquer local de trabalho teria obrigatoriamente um gajo giro!
O que é que eu vou fazer sem a musa radiofónica? A minha (minha e da Mariana) musa, linda de morrer, simpática, inteligente e com o sotaque alentejano mais charmoso de Lisboa e arredores!?
Como é que eu me vou habituar ao meu trabalho novo, onde não há um só gajo giro para lavar as vistas?

Wednesday, October 17

Inferno #189: Descoordenação.

As mãos esperneiam. Os pés gesticulam.
Os olhos articulam. A boca vislumbra.
As orelhas tocam-se. O corpo ouve.

Tuesday, October 16

Inferno #188: Pinheiro e carvalho '2

Quando voltou a acordar, não estava mais naquela cama fechada de madeira.
Agora, atordoada, espreitava com os olhos meio-fechados a cama em que a tinham deixado: era mais larga e mais clara que o caixão. Caramba, tudo ali era tão claro, quase nem conseguia abrir os olhos! “Será isto o purgatório?”
Depressa teve a resposta: um cheiro enjoativo a desinfectante, os gritos loucos de alguém muito próximo dela, e uma voz desconhecida, mas agradável, “Hora da medicação”.

Monday, October 15

Inferno #187: pensamento do dia.

A minha cabeça imprimiu a tua cara.

Inferno #186: vazios.

Algumas lágrimas são secas.
Alguns sorrisos são amarelos.
Algumas palavras são mudas.
Alguns gestos são vagos.
Alguns sentimentos estão apagados.
Algumas pessoas ficam esquecidas.

Inferno #185: comida.

Alimento-me de páginas em branco, porque sonho poder mudá-las com aquilo que existe dentro de mim.

Friday, October 12

Inferno #184: máxima.

Quem tudo quer, ainda não percebeu muito bem o que é que quer.

Inferno #183: máxima.

Mais vale não ter nenhum pássaro na mão, para conseguir apanhar as coisas que interessam realmente...

Inferno #182: Pinheiro e carvalho.

Estava deitada numa cama. Estranhou o vestido comprido que a envolvia, afinal o que é que lhe tinha passado pela cabeça? Quem é que se veste de gala para ir para a cama? Estranhou também o facto de a cama ser tão estreita. Costumava ser ampla, agora só tinha espaço para o corpo dela, assim como estava, direito e de costas para o colchão.
O dia estava claro, tão claro que não encontrava força para abrir os olhos. Sentia o corpo frio, dormente, e não tinha um lençol para se aquecer.
Ao seu redor, pairava um cheiro de verniz e pólen. Afinal não tinha dormido em casa…
Lentamente, mexeu os dedos da mão direita, que dormia sobre a esquerda, e sentiu a cicatriz que o pulso escondia. Nunca pensou que a tivesse feito assim tão grande…
Estava morta, e sabia-o agora.

Tuesday, October 9

Inferno #181: raio-x.

Os olhos já não são os mesmos. Ganharam ignorância. Perderam mundo. Apresentam-se vazios. No lugar deles, dois berlindes que aprenderam a passar pelas coisas sem as ver.
O cabelo teima em cair. Perde os tons outrora quentes. Agora é cor de rato. Fininho, as mãos quase não o sentem quando passam por ele.
As pernas e os pés vacilam a cada passo arrastado. As veias sobressaem como raízes de uma árvore velha, plantada há muito tempo no lugar de onde nunca saiu.
As mãos perderam vigor. Já não têm vida quando agarram as coisas; a vida que ainda têm serve-lhes apenas para suportar o peso da pele dos braços.
A boca conheceu os seus novos tons de rosa velho. Já não sabe a que sabem as coisas, porque já não as consegue sentir. Fecha-se cada vez mais sobre si mesma, engelha-se, porque já não é quente.
A pele empalideceu e enrugou.
Olha-se ao espelho e sorri, porque não é como se vê por dentro.

Monday, October 8

Inferno #180: "Verão" (Vivaldi).

Fui toda a sua exaltação, euforia e melancolia.
Quando acabou, aos 10.20 minutos, achei-a muito pequena. Mas a música continua na minha cabeça...

Sunday, October 7

Inferno #179: máxima.

BERRAR é humano.

Inferno #178: canção de amor e desamor.

"I'm the singer, I'm the singer in the band
You're the loser, I won't dismiss you out of hand
You've got a beautiful face
It will take you places

You kept running
You've got money, you've got fame
Every morning I see your picture from the train
Now you're an actress!
So says your résumé
You're made of card
You couldn't act your way out of a paper bag

You got lucky, you ain't talking to me now
Little Miss Plucky
Pluck your eyebrows for the crowd
Get on the airplane
You give me stomach pain
I wish that you were here
We would have had a lot to talk about

We had a deal there
We nearly signed it with our blood…
An understanding
I thought that you would keep your word
I'm disappointed
I'm aggravated
It's a fault I have, I know
When things don't go my way I have to

Blow up in the face of my rivals
I scream and rant, I make quite an arrival
The men are surprised by the language
They act so discreet, they are hypocrites so fuck them too!

I always loved you
You always had a lot of style
I'd hate to see you on the pile
Of ‘nearly-made-it' s
You've got the essence, dear
If I could have a second skin
I'd probably dress up in you

You're a star now, I am fixing people's nails
I'm knitting jumpers, I'm working after hours
I've got a boyfriend, I've got a feeling that he's seeing someone else
He always had a thing for you as well

Blow in the face of my rivals
I swear and I rant, I make quite an arrival
The men are surprised by the language
They act so discreet, they are hypocrites forget them
So fuck them too"

Belle and Sebastian, "Dress up in you" (The Life Pursuit)

Inferno #177: erros.

Sou uma gralha que escapou no texto. O revisor ainda estava mal acordado e não me leu. Sou uma gralha entre as palavras caras.

Inferno #176: focas e leões marinhos.

Não queria ser mais uma janela de escape para ele.
De início, parecia diferente, bom... Mas afinal eram apenas duas pessoas à procura de outras pessoas que as ajudassem a esquecer um bocadinho a mágoa quotidiana...
- Não ia resultar. É que ela não tinha escola nenhuma, e muito pouca vocação para aluna. Já ele, até podia ensinar-lhe tudo o que ela não sabia, mas depressa perderia a paciência...

Inferno #175: mais qu'est-ce que vous faites là?

Acabar uma conversa é algo de muito simples.
Para quê prolongá-la até que esteja totalmente vazia, se os dias todos se preenchem de outras conversas, também elas vazias?

Tuesday, October 2

Inferno #174: A caça.

Às vezes não gostamos dos poemas que nos dão a ler. E isso não é mau, é humano.
Eu não gostei do teu poema, não era esse que queria ouvir, era outro bem diferente. Também não me soubeste ler. Agora sequei para ti; estou muda e cega, não quero ler o teu poema, nem quero que leias os meus.
Até um dia destes.

Inferno #173: Estátuas de cera.

Nos dias em que as palavras ficam guardadas, é cera que me escorre pelas mãos e as seca. Ficam como estátuas. Não as posso usar para falar. Apenas as contemplo. A muito custo tento juntá-las e peço, em silêncio, que esta artrite seja mesmo passageira.

Inferno #172: Dias orangotangos.

Numa só manhã...
10.00h: Ignorar o sinal de trânsito proíbido (juro que não o vi) na presença de um polícia.
12.00: Deixar cair uma caixa de laranjas no supermercado (juro que não percebi que estava tão perto).
12.50: Partir a tigela das ameixas (juro que não a vi cair do frigorífico).

Resultados:
- o polícia até simpatizou comigo e por isso não me tirou a carta.
- um casal ajudou-me a arrumar as laranjas na caixa.
- uma vassoura e uma pá dão sempre jeito quando há vidros partidos no chão.

São assim os dias orangotangos: provocam acidentes em série. Mas dança-se o tango das coisas de todos os dias, e tudo se resolve...